09 novembro, 2012

Álbum de amizade (declaração de amizade)

Mas, se não captar aquela pequena raiz, o pequeno grão de loucura da pessoa, não pode amá-la. Se não captar o ponto de demência de alguém… Ele pode assustar, mas, a mim, fico feliz de constatar que o ponto de demêcia de alguém é a fonte de seu charme.”
 Gilles Deleuze¹

Em comemoração de meus 25 anos.

Amizade é caótica, bagunçada (pois é livre). A fotografia de grupo pretende captar e organizar um momento aleatório, mostrar (nos mostrar) o conforto que é estar em contraponto (ponto contra ponto, em relação; ora consoante, ora dissonante, mas tudo em prol à retórica perfeita da canção que é a amizade), conforto que pode ora precisar que se "afofe" mais um pouco as almofadas.



Amizade é recente, sempre atual (o passado da amizade deve rumar ao inconsciente, fora do ego, dentro do amor); nos atualiza no instante, no "já" (conselhos e sugestões de como resolver problemas imediatos, sejam eles aceitos ou não). Ao conquistar (sem esforço, por naturalidade, por amor) uma amizade, automaticamente o conselho, a sugestão, ganha importância, relevância.


Amizade é romântica; causa estranhamento e encantamento, nos enrubesce; amizade supera o gênereo e transcende o sujeito: inventa uma relação que deve, a cada instante, ser reinventada (a fim de que a amizade dure ela deve se atualizar sempre: deve evoluir dialetica e dialogicamente). Como podem relacionar-se o homem e a mulher na amizade recente? Eis que procuram-se novos conceitos, novas poesias, mas nada deve substituir, nunca, a amizade: a relação amorosa não passa (muito) de uma relação de amizade ultra-íntima.


Amizade resiste distâncias, virtualidades: não posso esperar que o amigo exista como eu existo; o ato quase-amoroso (proto-amoroso?) da amizade é precisamente receber e se deixar ser afetado pelo amigo como ele se apresenta (ser sensível ao estímulo mais próprio, único, individual e louco do amigo); querer que o amigo viva meu mundo é querer um outro eu: "quero desvelar teu mundo, amigo meu!"


Amizade permanece eternamente, mesmo aparentemente sem motivo (especialmente quando não há motivo): por que me afeiçoo por tal amigo? Por que permito que uma pessoa com a qual convivo, forçosamente muitas vezes, me conheça tão intimamente? Amigo não confia, não cobra confiança: a intimidade da amizade é tão clara quanto a da relação amorosa (ora, atreva-se a fofocar sobre minhas intimidades; não faz sentido trair um amigo).
"Fazer amor", na amizade, pode ser simplesmente 'rir': há quanto tempo rio com meu amigo? Quanto tempo mais vou continuar rindo? O riso dos que são íntimos (dos que conhecem segredos) tem intensidade própria, diferente do riso de prazer razo. O riso amigo não precisa de foco.


Amizade se dilui pelos vários anos que dura: sua intensidade nem sempre está na quantidade de tempo que se esteve junto, mas o próprio fascínio pela duração nos faz desejar estar junto um do outro: para sempre quero ser teu amigo para saber por que sou teu amigo, por isso planejo encontros, festas, bares; invento até mesmo amores, casos e problemas só para poder ter assunto com esta pessoa que amo tanto: meu amigo.


Amizade é divertida e despretensiosa. Estamos juntos nos momentos mais divertidos, principalmente as diversões importantes da evolução da vida social e profissional; participo, bebo, grito, rio nos mais importantes rituais (de formação profissional, acadêmica; aniversários, casamentos, nascimentos); não há nada que eu deseje mais do que estar vivo no teu velório (quero poder organizar teu velório), talvez o ritual mais importante de nossas vidas, e com certeza o ritual mais importante de nossas mortes; não suporto a ideia de te ver triste com minha partida, prefiro eu mesmo, na condição de teu amigo, suportar tua ausência terrena.


Amizade supera o gênero, transcende a sexualidade. O amor do amigo é como o amor de família: carinhos e cuidados infinitos. Supre todas as carências: emocionais, cognitivas e orgânicas (vitais): o amigo ama, ensina e dá de comer e beber. A amizade se torna como uma família, podendo o amigo se tornar um irmão - discute, discorda, e se apazígua no jogar videogame, no ver filme -, um pai (recrimina as ações aparentemente venenosas, dá conselhos rispidamente preocupa-se com a evolução viril -, uma mãe - se oferece a cuidar do que é mais caro e vital ao amigo -, tio, tia - deve ser aquele que apresenta e oferece o que os pais, por moralismo da posição paternal ou maternal, jamais se permitiriam se responsabilizar por pôr no mundo do filho -, vô, vó, cachorro, etc.


Amizade é produtiva, inventiva, criativa; produz desejos, devires. A própria relação dos amigos deve ser uma forma de obra de arte (original, em primeiro lugar), e como toda arte deve ter vida própria para além do "autor" (a relação de amizade): quero mostrar ao mundo nossa amizade; quero que nos vejam como Gil e Caetano, como Deleuze e Guattari, como Dionísio e Apolo.


Amizade é conflituosa, e a superação (resolução) de um conflito o faz se tornar uma anedota: "lembra-se de quando brigamos por aquele motivo banal? Como éramos crianças! Amigo, como fico feliz de ter superado isso ao teu lado": só com um amigo consegue-se superar conflitos e com estes gerar intimidades (quando brigo com um colega, imediatamente torno-me indiferente; já com um amigo, quando brigamos, nos odiamos para que o espaço do amor não permaneça vazio).
Distanciamo-nos um do outro, mas graças à relação de amizade deduzimos que o outro tenha seus motivos, e sabemos também que ele sabe que temos nossos motivos (o amigo não precisa que esses motivos sejam nobres pois eu o amo, e no amor tudo se justifica, inclusive a ausência).


Amizade é sóbria e profissional: devido as infinitas subjetividades, devo, na condição de amigo, me adaptar a relação, e encontrar a maneira mais potente de me relacionar com o amigo: não forço situações, quero que o amigo seja Outro (ele mesmo, no caso), e não eu mesmo: não quero que o amigo goste do que eu gosto, mas fico feliz com as coincidências; as coincidências coincidem nosso repertório de assunto.
Por alguns instantes, em algumas situações, sinto que tenho algo a ensinar ao amigo (quanta audácia a minha!), e o incrível acontece: o amigo, atencioso e carinhoso como uma mãe, aceita minhas sugestões e admite ter aprendido comigo; o amigo nos satisfaz; o amigo é como a mãe que se permite aprender com seu filho, e com os filhos dos outros.


Amamos quem ama quem amamos: como pode meu amigo amar tanto uma outra pessoa? Encanta-me este amor deles onde não estou. Eu poderia ter ciúmes, mas por fim percebo a alegria produzida a partir dessa relação (que não é minha, não é nossa: é deles, e é exclusiva) afeta a relação com meu primeiro amigo, como se meu amigo me amasse ainda mais por amar outra pessoa. Por fim que surge o maior encantamento: este amigo que ganhei como que um brinde, um presente, mostra-se tão interessante que eu mesmo desejo me relacionar para além do primeiro amigo (que ama e é amado por esta nova pessoa) e a cada encontro essa nova amizade evolui. Percebo, então, o que tanto apaixona o primeiro amigo nesta nova "amizade": apaixono-me também, de outra maneira, sem a intimidade amorosa.
(Desde que se permita e se esteja sensível a estímulos diversos toda relação que compõe um corpo irá compor todos os corpos que formam o que poderíamos chamar de "coleção de amigos")


Amizade é saudade, para sempre. Mesmo ao teu lado agora, na atualidade da nossa relação, fantasio nossa relação mais primitiva: sinto saudades, agora, de ti ao teu lado, agora. Quero poder sentir saudades de ti sempre, eis a amizade: não te quero como fosses, mas como és, e (in)felizmente és outra pessoa. Inventamos novos jogos, novas relações, novas formas de intimidade.
(Os afetos mais fortes são aqueles inexplicáveis, não é à toa que para se falar de amor precisa-se de uma obra de arte, pois o discurso (a dedicatória) nunca é suficiente. Nossa relação é tão intensa que não me atrevo a falar dela, sempre que o tento sinto-me cafona e fraco, eis porque preciso de nossa amizade: quero ser clássico e forte.)


É necessário que se discorde do amigo: quero crescer junto dele. Irrito-me a cada sinal de infantilidade, sinto-me um pai (as relações na amizade se refletem como na família, mas se desenvolvem de outra forma: não posso me atrever a moralizar meu amigo, ainda assim o faço). O amigo me estimula a pensar de forma nova, a aumentar meu mundo; aponta minhas contradições, fico então curioso: quem é este que não sou eu mas que me aponta com precisão? É o amigo.


Amizade dura: é antiga, presente e futura. Conheço seus gostos antigos e compreendo seus atuais; tou sempre consultando o amigo para afirmar meu bom gosto (da família eu resisto, do amigo eu absorvo).
Amizade é infantil: o "outro", o amigo, permite (muitas vezes apenas reconhece assim) que sejamos a criança de quando se tem as melhores lembranças juntos (a amizade é relação nostálgica; relação de passado no presente).

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