04 agosto, 2017

Ladainhas e clichês que se escuta falar sobre fazer música

Muito hoje se fala sobre música como negócio, assunto mais que urgente. Diz-se que um grupo de música, uma banda, é como um casamento, depois diz que deve se levar como um negócio, sem misturar o pessoal e o profissional. Ora, ou se casa por tesão e amor ou por arranjo econômico e familiar institucional. Música não é sequer casamento ou empresa. O Palcodigital levanta importantes estereótipos que atrapalham a manutenção de um grupo de música, mas são genéricos mal articulados que atrapalhariam qualquer investimento na vida, é a técnica do mind set, querer manipular a maneira de o músico pensar para encaixar-se no padrão estabelecido.

Não podemos nunca fazer as coisas em nome do medo, é uma questão espinosista, medo é paixão triste, portanto nos tira a potência de agir. Porquanto o medo nos proteja da morte, a música não se trata de sobreviver, mas de produzir desejo, super viver. Um sujeito pode não querer largar seu emprego e dedicar-se a banda de tal maneira não só por medo da fome, mas porque mais deseja a tranquilidade e estabilidade de sua família ou qualquer outro motivo subjetivo. Fazer música não é ter loja de capas para celular, é fazer arte. Envolve a vida do sujeito por inteira, do nascimento ao fim, não se trata apenas de manter-se vivo, mas de aumentar a vida, não só a própria. O medroso não deveria estar em bandas nem em lugar algum, mas a arte pode, por exemplo, lhe sublimar este afeto triste e lhe permitir um bom esquecimento. Expulsar um medroso da banda só para que a banda venda mais? Pois bem, cada um tem sua prioridade, mas me parece arbitrário.

O perfeccionista deve ser valorizado, mas ter o ego amansado. A banda não deve ser um ambiente paranoico para que os sujeitos se encaixem, mais uma vez, no status quo. Mas ambiente para transcendência, logo não é nem casamento nem empresa. Dificilmente um esposo ou esposa gostaria que seu cônjuge transcendesse algum aspecto no relacionamento, isto deveria ser minuciosamente negociado. Na empresa então nem se diz, se o patrão não gostar de uma sugestão ou ação, o que espera o sujeito crítico é o desemprego e a fome.

Fazer da música simples demanda a ser atendida, sem inclusive dar ferramentas de formação para os músicos, pode desqualificar o meio. A maioria dos compositores no Brasil nunca tiveram contato com educação musical formal, não que por si isto seja defeito, é uma qualidade a ser considerada, porém se estes músicos são alfabetizados pelo ouvido, lhes sendo exigido apenas atender pedidos de público alvo, dificilmente se desapegará dos clichês. O perfeccionista deve ser convidado a cada instante a mostrar seus defeitos, na mesma medida reparar-se-á em suas qualidades. O problema de evitar o perfeccionismo é que hoje muitos músicos deixam esse aspecto técnico, que não deixa de existir, para as máquinas, com quantizações, afinadores, e outras ferramentas digitais. Para o público não há queixa, as músicas chegam todas com os mesmos volumes, temperaturas, temperamentos e sabores, é como comprar um chocolate diferente no mercado, pode até ser pior que o favorito mas não será ruim. Não como ir num museu, este choca, irrita, encanta, muda nossa vida um pouquinho. Para o artista, essas ferramentas digitais, quando usadas para maquiar, lhes impede de ouvir também seus acertos. A maquiagem serve de cores e correções, a arte de coração, sincera, ou então irônica, ou qualquer outra coisa, mas não sem intenção ou emoção, como intenções de farmacêutico de bairro.

O atrasado é realmente um problema em todos os ambientes, de trabalho, de amizade, qualquer que seja o compromisso por informal que seja, atraso é deselegante e desrespeitoso, independente da situação. Mas não é imperdoável. Houve tempo em que bandas se reuniam basicamente em escolas ou bairros, hoje as metrópoles possibilitam encontros cada vez mais distantes, e as imprevisibilidades de trânsito, o tempo de deslocamento, obrigam alguns membros que dependem de transporte urbano para deslocar a si e a seus instrumentos, viajarem durante horas para percorrer poucos quilômetros. Não é exagero. Principalmente quando há horário marcado em estúdio pago, o atraso é imperdoável. Mas não há algo que esta banda possa fazer na ausência deste membro? Há alguma maneira de favorecer um pouco quem se desloca mais, quem tem menos recursos para o transporte? Ou a banda deve ser todas de pessoas com o mesmo poder aquisitivo? A única solução para este membro é sua expulsão? Ele é assim tão desimportante? É difícil encontrar horários para todos na banda, sempre é. Em shows não se pode atrasar, e contra isso poderia-se combinar até descontos no cachê, apesar de também arbitrário, mas os integrantes que tem carro podem oferecer caronas mesmo distantes com um diferencial no pagamento, ou a banda poderia reunir-se para oferecer diferencial para Uber ao membro que mora longe. Por isso banda não é empresa, empresa costuma pagar vale transporte. Nesse aspecto se parece com uma família, a empatia costuma ser ponto de partida. Também não se parece com casamento, porque há até um charme em certos atrasos como o da noiva.

A obsessão é também um problema em qualquer aspecto da vida, inclusive higiene pessoal. Não há muito o que falar, é assunto explorado pela psicologia, psiquiatria e psicanálise, astrologia, todos parecem ter opiniões e maneiras de lidar com obsessão. Não se deve nunca levar a popularidade como sintoma de qualidade. Nunca.

O instrumentista ruim pode ser ruim, mas mesmo Nirvana, famosa por não ter bons instrumentistas, é famosa também por ter uma obra consistente e relevante. O músico convidado para apoiar a guitarra instável de Kurt também não era lá grande instrumentista, mas fazia parte da estética. Isto o artigo do Palcodigital não considera, estética. Aliás, fala de tudo, menos de música. O instrumentista chamado ruim deve ser embarcado pelo grupo se assim lhes apetece, seja a fome pela amizade ou pelo rock n' roll. Adaptar-se a partir das dificuldades me parece um dos únicos meios eficientes de se fortalecer. A teoria, os livros, as estratégias são guias, mas a experiência, a dor e o prazer conectam esta consciência ao desejo, aos buraquinhos por onde escorre a criatividade. Um sujeito é um mundo e os escopos devem ser ultrapassados, como adaptar o arranjo do coro para a catedral sem deixar de inovar, evitar o trítono sem evitar a blasfêmia, pintar toda uma capela e oferecer um punhal aos Deuses. Todo artista mata Deus, porque sabe que morrerá, Deus não.

Querer que seu trabalho seja ouvido é, além de tudo o mais, óbvio. Divulgação e distribuição fazem parte da maneira como consumimos música hoje. Houve tempos em que não se tinha música em casa então todos eram obrigados a se deslocarem para alguns lugares e ouvir as mesmas músicas. Hoje a música vai até os bolsos das pessoas, pela rádio, pela tevê, pela rede. Pela rádio o artista precisa de jabá, pela tevê precisa fama e ideologia, pela rede precisa de canais e cliques. Com certeza pela internet é um meio mais fácil de se fazer ouvir, seja por muitos ou não. Divulgação de bandas pela web costuma se confundir com spam. Conhecidos com que há muito não conversamos pedindo pra ouvir suas músicas sem nunca terem se disposto a ouvir as nossas, grupos de amigos músicos em redes sociais com propaganda de shows e clipes, e sei lá mais o que sem nem curtir a página do amigo, ou seguir Soundcloud, Spotify. Pede-se muito dá-se pouco. Cada um tem a sua maneira de divulgar seu trabalho, o profissional nisso é o publicitário, se a banda quer trabalhos destes profissionalizados deveria contratar alguém que assim o faça. O marqueteiro não se implica na obra. Não podemos ignorar as questões de orgulho, vergonha, e outras subjetivas do autor. Seu trabalho é compor, vender é outra virtude, necessária, mas a banda deve se ajudar, sem se queimar e atolar a caixa de correspondência dos parceiros com discos que nunca ouvirão. Falta cena, artistas unidos falando um do outro, um crooner, uma Gal Costa que cante Caetanos, Gils, Cayimmis e a família toda, Miltons e clubes em esquinas que aceite mais que rock. Uma cena romântica, de ação, uma cena de militância e brio. Propaganda é alma de negócio capitalista, é o que diferencia Coca e Pepsi, não Van Ghogh e Duschamp. A alma da arte é outra, é preciso vender pra sobreviver, labuta é labuta, mas não devemos fazer música porque precisamos, como urinar, mas porque desejamos, como amar.

2 comentários:

  1. Bacana!! Me conquistou quando citou Espinosa...gostei do viés filosófico, rsrs.

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  2. Hj mais experiente compartilho da msm ideia sua ������

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